Gestão estratégica da mastite: o caminho para vacas mais saudáveis e eficientes
A mastite é uma das principais doenças que afeta a pecuária leiteira, impactando diretamente a produtividade e a rentabilidade das fazendas. Além do custo com o tratamento das vacas infectadas (doentes), as maiores perdas econômicas se originam da redução na produção e qualidade do leite, do descarte de animais e do descarte de leite devido à presença de resíduos de antibióticos. Estima-se que a mastite seja a doença com a segunda maior perda financeira anual, totalizando aproximadamente 13 bilhões de dólares por ano (Rasmussen et al., 2024). Ao nível de rebanho, essas perdas podem chegar a cerca de US$ 92.000 dólares por ano(ou 552.000 reais/ano, Guimarães et al., 2017) ou, ainda, ao nível de animal, a 250 dólares (aproximadamente 1500 reais) por caso de mastite clínica (Raboisson et al., 2020).
No Brasil, cerca de 88% dos rebanhos possuem média da contagem de células somáticas (CCS) individual maior que 200 mil células/ml de leite. Ainda, metade dessas fazendas apresenta CCS na ordem de 300 a 900 mil células/ml de leite (Figura 1). O desafio nessas propriedades é claramente de origem contagiosa, visto a alta porcentagem de vacas crônicas (25%) – três vezes maior do que a referência (<10%); e a baixa porcentagem de cura (9%), demonstrando que as vacas que se infectam não se curam durante a lactação (Figura 2). Outro fato claro é a perda em produção de leite. Vacas com mastite subclínica (CCS maior do que 200 mil células/ml) têm média de produção de leite 23% menor do que as vacas sadias (27 kg/dia vs 35 kg/dia).
Apesar do impacto da mastite nos rebanhos ser evidente e amplamente disseminado, a CCS média, a taxa de novas infecções e de vacas crônicas têm sido estáveis, o que nos leva a questionar as ações de controle que têm sido adotadas. Seria pela dificuldade do controle ou por negligência com o problema?
Na verdade, o problema provavelmente se mantém não pela falta de ação, mas pela abordagem empregada. Prioriza-se o tratamento ou descarte de vacas infectadas sem investigar e corrigir a origem do problema, isto é, trabalha-se sobre as consequências sem tratar as causas. A mastite é, antes de tudo, uma doença de rebanho e deve ser resolvida gerencialmente. Isso demanda um programa estruturado que envolva protocolos de prevenção e controle claros e baseados em evidências científicas, a aplicação correta e consistente desses protocolos e, principalmente, a compreensão de todos os envolvidos sobre a importância das ações para o sucesso do programa. Ou seja, é necessário que se tenha clareza nas ações, foco na execução, disciplina na rotina diária e engajamento de todos os envolvidos.
Entender antes de agir
A primeira etapa na resolução de um problema é o seu entendimento. No caso da mastite, isto pode ser feito por meio da avaliação da dinâmica da infecção.Como visto acima, rebanhos com alta cronicidade (> 10%) e baixa taxa de cura (<10%) provavelmente tem predominância de agentes contagiosos, como Staphylococcus aureus, Streptococcus agalactiae e Mycoplasma spp. Nesses casos, as vacas infectadas são a fonte de infecção e as mãos do ordenhador e equipamentos de ordenha os principais veículos de transmissão, que ocorre principalmente durante a ordenha. A mastite contagiosa tem maior prevalência em vacas no último terço da lactação e de maior ordem de lactação, justamente pela maior exposição desses animais aos patógenos. Portanto, verificar a categoria animal com maior ocorrência de mastite subclínicatambém pode auxiliar nesta análise (Figura 3).
Por sua vez, no caso da mastite causada por agentes ambientais, como Escherichia coli, Streptococcus dysgalactiae e Staphylococcus nãoaureus, é comum ambas as taxas de infecção (> 10%) e cura (> 30%) serem altas. Tratam-se de agentes de menor risco e com alta taxa de cura espontânea. Por isso, as vacas tendem a continuamente se infectarem e se curarem durante a lactação. Essas bactérias estão presentes na cama, fezes, água e solo, e não dependem da transmissão entre vacas como os agentes da mastite contagiosa; ocorrendo como consequência de falhas no manejo do ambiente e bem-estaranimal; como alta lotação, camas sujas, excesso de matéria orgânica (fezes e urina) nas áreas de descanso e corredores, má higienização dos tetos antes e depois da ordenha (pré e pós-dipping), ventilação insuficiente, etc.
Além das informações obtidas na análise de amostras individuais de leite,indicadores coletados à campo também contribuem para esse entendimento.Tetos erodidos (hiperqueratose), com lesões, edemas e/ou azulados são importantes indicadores de falhas no ajuste do equipamento de ordenha e/ou do processo de ordenha propriamente dito. Por exemplo, se o tempo entre o estímulo pré-ordenha e a colocação das teteiras for menor do que 90 segundos e as teteiras forem colocadas antes da ejeção do leite, o vácuo do equipamento de ordenha poderá agir em um teto com baixo fluxo de leite, causando hiperqueratose, lesões e edemas. Vácuo excessivo no equipamento de ordenha e sobreordenha também são causas de hiperqueratose, condição que dificulta o fechamento do canal do teto e facilita a entrada de bactérias causadoras da mastite.
Da mesma forma, vacas chegando na ordenha com sujidades visíveis no úbere e pernas são indicativos de excesso de matéria orgânica no ambiente, o que favorece as infecções ocasionadas por bactérias ambientais. Adicionalmente, a entrada de vacas sujas na ordenha dificulta o processo de ordenha, exigindomaior tempo para higienização dos tetosque, se não realizada corretamente, pode reduzir a eficiência dos produtos utilizados para a sanitização dos tetos.
PCR: do diagnóstico ao monitoramento
Outro componente-chave no entendimento e estratificação do problema de mastite e posterior delineamento do plano de ação é o conhecimento dos agentes causadores das infecções do rebanho. É inerente aos programas de controle de mastite o uso de um método de diagnóstico acurado, que viabilize decisões assertivas tanto sobre o rebanho (separação em lotes e uso de linha de ordenha) quanto em relação aos indivíduos infectados (tratamento, secagem ou descarte).
Nesse sentido, a adoção do PCR como ferramenta de diagnóstico em programas de controle de mastite tem se tornado extremamente atrativa, visto que se trata de um método altamente acurado, de rápida execução e obtenção de resultados e que permite que uma mesma amostra seja investigada para vários microrganismos a partir de uma única análise. Apesar de ter se popularizado recentemente, o uso do PCR (ou reação em cadeia polimerase – polymerase chain reaction) na detecção de doenças infecciosas é antigo, tendo sido demonstrado pela primeira vez em 1987 (Kwok et al., 1987; Zhu et al., 2020), ou seja, há 37 anos. Nessa técnica, a presença do microrganismo na amostra é detectada por meio da detecção de uma sequência única do seu material genético, o que confere a alta especificidade do método (>99%). Além disso, o PCR é capaz de detectar a bactéria viva ou morta na amostra de leite mesmo em baixa concentração, o que o torna extremamente sensível(>99%).
Especificamente na detecção de agentes causadores de mastite em amostras de leite, o PCR apresenta uma vantagem adicional: a sua flexibilidade quanto ao tipo de amostra a ser analisada. O PCR pode ser utilizado em amostras mantidas em temperatura ambiente com conservantes (por exemplo, bronopol) ou em amostras congeladas; amostradas de um único quarto mamário, dos quatro quartos, ou ainda de tanques ou silos. Adicionalmente, pode ser aplicado em amostras de grupos de vacas (pools), as quais são amostras compostas formadas a partir das amostras individuais.
Com isto, o papel do PCR dentro de um programa de controle de mastite torna-se mais amplo e não restrito apenas à identificação de vacas infectadas, se estendendo do diagnóstico inicial do problema de mastite até o monitoramento do resultado das ações. No protocolo desenvolvido pela Clínica do Leite para o controle de mastite contagiosa, sugerimos iniciar sempre com a análise da amostra de leite do tanque, identificando se o desafio no rebanho é de origem ambiental ou contagiosa. Como Staphylococcus aureus é eliminado de forma intermitente no leite (devido à formação de biofilmes e/ou pela colonização de tecidos profundos da glândula mamária e células de defesa), a sua ausência no rebanho deve ser confirmada apenas depois de três análises de PCR do leite do tanque dentro do mesmo mês.
Caso o desafio da fazenda seja os agentes contagiosos, ou seja, bactérias das espécies Staphylococcus aureus, Streptococcus agalactiae e/ouMycoplasma bovis, uma medida imediata é a identificação das vacas infectadas para a separação dessas dos animais sadios e implementação de linha de ordenha. Para tanto, é possível fazer aanálise de PCR em pools de amostras individuais de vacas, de forma a realizar a triagem no rebanho a partir de um menor número de análises, o que torna essa estratégia financeiramente eficiente. Recomenda-se que a formação dos pools considere a contagem de células somáticas, lote, número de lactações e estágio de lactação das vacas. O tamanho ideal dos pools está associado à prevalência no rebanho:
- Prevalência < 10%: pools de 20 vacas;
- Prevalência entre 10 e 15%: pools de 10 vacas;
- Prevalência >15%: pools de 5 vacas;
- Prevalência entre 20 e 30%: pools de 3 vacas;
- Prevalência > 30%: análise individual.
Para a identificação dos animais infectados e tomada de ação, as amostras de vacas pertencentes a pools positivos para bactérias contagiosas devem ser analisadas individualmente para a identificação dos animais infectados e posterior tomada de ação (separação em lotes, tratamento/secagem ou descarte). Vacas tratadas ou secas devem ser reanalisadas dez dias após o tratamento ou o parto, respectivamente, para a confirmação da cura e retorno aos lotes de vacas sadias. Esse procedimento deve ser repetido mensalmente até que o resultado do PCR de tanque seja negativo para os patógenos contagiosos. Sendo negativo, o monitoramento do rebanho continua via PCR do leite do tanque e por meio da análise de PCR das vacas pós-parto, vacas classificadas como novas infecções (1º mês com CCS > 200 mil células/ml) e novas infecções do mês anterior que se tornaram crônicas (dois meses consecutivos com CCS > 200 mil células/ml).
A Clínica do Leite realiza há três anos análises de PCR em amostras de leite do tanque, de pools e amostras individuais de vacas, de forma similar ao realizado em laboratórios localizados nos EUA (Central Star e AgSource), Canadá (Lactanet) e Suíça (Suisselab), por exemplo. Aqui são investigados 15 patógenos associados à mastite contagiosa ou ambiental. Contudo, tendo o rebanho um histórico de mastite causada por agentes contagiosos (Staphylococcus aureus, Mycoplasma bovis, Streptococcus agalactiae e Streptococcus uberis), há a possibilidade de se investigar as amostras somente para essas bactérias.
No último ano, os patógenos mais prevalentes dentre os detectados nas amostras analisadas pela Clínica do Leite foram Staphylococcus aureus (14%), Streptococcus uberis (13%) e Streptococcus agalactiae (12%), o que está alinhado com a dinâmica da infecção (Figura 2) de que a mastite contagiosa é principal desafio nos rebanhos brasileiros. No entanto, a aparição em segundo plano de bactérias como Escherichia coli (10%) e Streptococcus dysgalactiae (10%), ambas presentes na matéria orgânica (por exemplo, cama e esterco), demonstra que o desafio ambiental também é relevante e que medidas de manejo voltadas para a higiene, ventilação e qualidade da cama devem ser abordadas para reduzir a exposição das vacas a esses patógenos. Esse cenário reforça a necessidade de estratégias integradas de controle da mastite, combinando boas práticas de ordenha para reduzir a transmissão de agentes contagiosos com melhorias no ambiente para minimizar infecções ambientais.
Mastite: o controle começa pelo gerenciamento dos processos
Conforme discutimos, a mastite é uma doença multifatorial cujo controle envolve desde ações relacionadas à rotina de ordenha até a ambiência e bem-estar dos animais. Isso torna a solução do problema difícil e, principalmente, exigente quanto ao comprometimento e à disciplina dos envolvidos. No entanto, a dificuldade em resolver o problema não deve ser razão para ignorá-lo. O enfrentamento do problema torna-se mais acessível quando se busca conhecê-lo com mais profundidade, entende-se as causas e define-se as ações para solucioná-lo.
Portanto, para o sucesso no controle da mastite, é imprescindível um compromisso contínuo com as boas práticas de ordenha, manutenção do equipamento de ordenha, higiene do ambiente e envolvimento de toda a equipe na implementação de um programa consistente e bem estruturado de prevenção e controle. Apenas por meio de uma abordagem integrada e baseada em gestão será possível melhorar os índices sanitários e produtivos, garantindo vacas mais saudáveis e maior eficiência e rentabilidade para as fazendas leiteiras.
Material escrito por:
Juliana Petrini
Paulo Fernando Machado
Publicação: Portal MilkPoint Ventures